domingo, 2 de maio de 2010

Sobre uma dissolução

Chovia, chovia muito. Eu não sabia porque, mas chovia. Através da vidraça embaçada, via as pessoas correndo, para qualquer lugar que fosse, a fim de escapar da tormenta. Dois ou três rostos vazios entraram no café, fazendo soar a sineta presa ao umbral da porta. Todos ensopados, estranhamente ensopados. Nos gestos ficcionais que executavam ao retirar seus casacos, havia algo de misterioso e fascinante. Entretanto, ninguém pareceu ocupar-se deles, além de mim. Eu mesmo não o fiz por muito tempo; logo, estava novamente absorto na contemplação das sombras que se moviam, ligeiras, lá fora. Deleitava-me o inconfundível sabor do café, bem quente, e a densa volúpia da nuvem de fumaça que me envolvia, progressivamente, a cada novo trago no cigarro. Sobre a mesa, espalhavam-se alguns livros que trouxera comigo, e que, no entanto, desconhecia. E foi assim, envolto por essa falsa aura de dandismo, que eu vi Nathalia.
Ela possuía uma beleza difícil, dessas que ordenam um pouco de tempo para serem prefeitamente admiradas. Sob a luz do poste, seus lânguidos olhos azuis cintilavam timidamente, inflamados por aquela expressão quase pueril que é característica de certos estados de entorpecimento. Ela estava muito molhada, por causa da chuva. Tão molhada que parecia transparente. Os cabelos ruivos, que outrora haveriam de ter sido lisos, escorriam-lhe agora pela testa e pelo pescoço, como uma cascata de fogo. O vestido roxo agarrava-se ao seu corpo esguio, realçando-lhe os quadris pontiagudos, os contornos dos seios e do ventre. A maquiagem em torno de seus olhos derretera, fazendo-se líquida, as manchas do lápis delineador rolando sobre suas faces como lágrimas negras. Sua postura, ereta, era de uma elegância quase vitoriana, não obstante a tempestade, que castigava a tudo e a todos. A cabeça e o ombro levemente encostados no poste, as mãos para trás, possivelmente à altura das nádegas, e possivelmente também entrelaçadas; e o ar sublime de bailarina com o qual dobrava a perna esquerda sobre a ponta da bota. Parecia indiferente a tudo, ao passo que tudo parecia convergir para ela, como se fosse um prisma, ou o ponto de fuga de um quadro.
E pensar que aquele corpo, que - principalmente - aquela alma haviam saído de casa inteiramente secos! Compadeci-me dela. Ao menos, foi compadecimento o que pensei ter sentido. Achei aquela situação completamente injusta. Eu, ali dentro, aquecido por essa atmosfera indolente que paira, qual um fantasma acéfalo, à sombra dos cafés, enquanto ela, lá fora, resignadamente aceitava o seu destino de chuva. Era preciso fazer alguma coisa. E, no entanto, o quê? Acenar, convidando que entrasse? Ir até ela, cobri-la com meu casaco e pedir-lhe que viesse se sentar comigo, a fim de que pudesse se secar e tomar uma bebida quente? Em minha mente, muitas outras possibilidades cogitei, além dessas duas. Todas, porém, colidiram contra uma barreira invisível, erigida por um simples fato: era evidente que, se ela desejasse entrar, tê-lo-ia feito já há muito tempo. Era, sem dúvida, uma motivação outra que fazia aquela mulher permanecer ali, inviolável, em meio à tempestade que a açoitava, uma motivação que, pareceu-me, estava acima de qualquer compreensão, de qualquer vão entendimento que não fosse o dela. Restou-me ignorá-la, e retornar ao meu ocioso prazer espectral. Então ocorreu um fato estranho, pois tão logo pus os olhos sobre a mesa e vi meus livros, a xícara - já quase vazia - e o maço de cigarros, tive a sombria certeza de que Nathalia havia desaparecido, que já não estava mais lá fora, junto ao poste.
Tal certeza fulminou-me como um soco ou um pontapé; todavia, não tornei a olhar a rua, pois tal atitude me pareceu um tanto incongrüente, imbecil até.
Assim, lá estava eu novamente, entregue à minha cega contemplação de coisa alguma. A garçonete, obsequiosa, aproximou-se, perguntando-me se desejava algo mais além do café; disse-lhe que me trouxesse outra xícara, visto que este que eu bebia já estava frio. Ela se foi, após sorrir aquele sorriso mecânico, tão característico em pessoas que desempenham este tipo de função. Leve como uma brisa, escorregou seu corpo magro habilmente por entre as mesas, indo colar-se ao balcão. Honestamente, eu sequer queria mais café. Pedi com o intuito único de agradar a garçonete, que tão prestimosa fora em vir até ali ocupar-se de mim, sem que eu nem ao menos a tivesse chamado. Acabei afeiçoando-me àquela moça, simplória como me parecia, com uma atitude mais servil do que talvez exigisse o seu dever profissional. Resolvi dar-lhe uma boa gorjeta.
Perdido em meu devaneio sobre a garçonete, súbito abateu-se sobre mim uma espécie de mal-estar, senti meu corpo pesado, sufocado, como se alguma força externa e invisível exercesse enorme pressão sobre mim, fazendo com que o simples ato de respirar me fosse extremamente penoso. Senti também uma certa tontura, e formigamento nos braços. Essas sensações não duraram muito; logo, eu já respirava normalmente, e o tal sufocamento dissipava-se. A garçonete retornara, trazendo o café. Agradeci, e ela sorriu, porém desta vez tive certeza de que seu sorriso era muito natural, o que deixou-me, confesso, um tanto contente. Minha mão logo buscou o maço de cigarros, mas decidi que o melhor seria tentar parar de fumar. A idéia de morrer jovem me era repugnante. Casualmente - ou nem tanto -, tornei a olhar para a rua: Nathalia ainda estava lá. Foi uma espécie de surpresa desagradável. Eu não esperava vê-la novamente, ao menos não ali; inerte ainda, como antes, sombra atemporal. Havia, porém, uma diferença: seu olhar agora já não estava vazio, como que a contemplar o nada. Ela agora olhava diretamente para mim.
Não gostei daquilo, senti-me muito desconfortável. Prontamente voltei-me para dentro. Aquela mulher, embora muito distinta, figurava-me agora como alguém que não se encontrava em seu melhor estado de consciência. Decidi não dar mais atenção a ela.
A sineta da porta soou, anunciando a entrada de uma bela moça, alva, de cabelos negros e longos, um nariz fino e os malares muito altos, lembrando, em seu sério semblante, aquelas mulheres escandinavas habituadas ao frio do Norte do mundo. Deixou na entrada o guarda-chuva molhado, e não pude deixar de segui-la, com o olhar, enquanto encaminhava-se até uma das mesas, na qual sentou-se delicadamente, cruzando as pernas e largando a bolsa no chão. Começou a olhar ao redor, coisa que comumente fazemos ao chegar a esse tipo de lugar. Então, como era de se esperar, nossos olhares se encontraram, e ela fixou-se em mim, ao perceber que era observada. Encaramo-nos por pouco tempo, pois a garçonete - que não era a mesma que me atendera - já se aproximava dela. Conversaram, e a atendente saiu. Fitei-a ainda por algum tempo, embora não mais fosse correspondido como antes. Foi aí que tudo ocorreu novamente.
A mesma sensação de apreensão e sufocamento dominou-me, desta vez com maior intensidade ainda. A cabeça rodava violentamente, e minha vista chegou inclusive a escurecer por um momento. Aquele mal-estar me esmagava, impiedosamente. Era como estar preso entre dois elefantes. Certo de que desmaiaria, apoiei-me sobre a mesa, a fim de não cair da cadeira e acabar atrapalhando o fluxo do café. Entretanto, nada se deu como eu esperava, e, tal qual o primeiro, este segundo "ataque (assim o classifico por falta de melhor termo)" também foi-se esvanecendo, e eu logo me recompunha, cogitando que o melhor seria mesmo ir embora.
Foi o que fiz. Aproveitando-me de uma trégua concedida pela tempestade, paguei a conta e saí. Imediatamente senti o gélido choque de uma lufada de vento em meu rosto, e esta veio acompanhada por minúsculas gotículas que anunciavam a eminência do retorno da chuva. Apressei-me, o ponto de ônibus ficava a mais ou menos uma quadra do café. Não obstante, ao dar o primeiro passo, como que atraído por uma espécie de magnetismo sobrenatural, meu olhar voltou-se na direção do poste fatídico. Não sei porque, mas estremeci. Lá estava ela, precisamente no mesmo lugar, agora sorrindo e acenando para mim. Lá estava Nathalia.
Fui tomado por um tipo de pavor ancestral, aquela ominosa sensação de medo de algo indefinido, semelhante a aquilo que as pessoas supersticiosas sentem ao ouvir certos barulhos ou ver certos sinais em determinado dia, local ou horário. Que fique bem claro que não sou uma dessas pessoas: não tenho medo de quaresma, dia das bruxas, ou coisa que o valha; não temo fantasmas, demônios e outras bobagens desse tipo; sequer sou religiosos. Simplesmente, como já disse, fui tomado de assalto por este pavor horrendo, ao ver aquela singular figura - que estivera naquele mesmo lugar durante as últimas duas ou três horas, pelo que me constava - acenando em minha direção.
Paradoxalmente, esta sensação de pavor, ao invés de me fazer sair dali de uma vez, parecia compelir-me fortemente para que fosse até ela. Dessa forma, minhas pernas, ainda que trêmulas e sem o meu consentimento, arrastaram-me agônicamente através da rua, vazia e escura, cada vez mais perto, mais perto dela... À medida que me aproximava, seus acenos se tornavam mais constantes, mais rápidos, mais arritmados, ao passo que sua boca abriu-se num largo sorriso, expondo duas fileiras de dentes surrealmente brancos, que resplandeceram como pérolas, à luz mortiça do poste. Todo o rosto dela se iluminava, numa sensual expressão de langor, e o corpo parecia feito inteiro de água, tanto ela havia estado sob a chuva. Se as circunstâncias fossem outras, eu a teria desejado imensamente. Agora, porém, tudo o que desejava era não ter de me aproximar daquela mulher, que até o momento me obrigava a adivinhar coisas indizíveis ao longo da noite. No entanto, não podia evitá-lo. Estava agora a menos de três metros dela, e me parecia já poder sentir o aroma de seu hálito fresco, invadindo-me como uma brisa quente. De repente, um som, semelhante ao de vidro quando se quebra, e que parecia surgir de alguma incomensurável distância, chegou-me aos ouvidos. Sentindo-me como um paciente de hipnose que houvesse sido desperto de seu transe, virei-me, rapidamente, na direção de onde, julgava, o som viera. A porta do café se abriu, e um casal de namorados saiu, de braços dados e sorrindo. Foi o suficiente. Assim que voltei-me novamente para o poste, como já se pode deduzir, Nathalia havia desaparecido.
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Tais eventos passaram-se comigo há cerca de um ano atrás. Desde então, como se pode imaginar, minhas certezas a respeito da vida diminuíram consideravelmente, e as dúvidas, conseqüentemente, aumentaram. Sou um homem comum, envolvido numa situação que está muito aquém de sua prosaica compreensão. Posso, entretanto, aceitar muitas das coisas que ocorreram naquela noite. Quer dizer, não me parece tão absurdo, de todo, que uma pessoa passe horas sob forte chuva; ela podia ter uma gama enorme de motivos para fazê-lo. Da mesma forma, não me é tão inexplicável o fato de ela ter acenado para mim, à saída do café; em última análise, é possível que fosse uma dessas mulheres que, como todos sabem, fazem da vida noturna sua profissão, e que, assim sendo, tivesse visto em mim algo como um cliente em potencial. E, quanto ao seu súbito desaparecimento, bem, eu poderia perfeitamente ter me demorado mais, observando o casal de namorados, do que no momento julguei, e dado a ela tempo mais que suficiente para que se fosse, engolida pelas trevas. Não, meus amigos; todos esses fatos, embora, certamente estranhos e incomuns, podem ser razoavelmente explicados. Não é isso o que me atormenta, a ponto de me ter posto doente. Não é essa a causa de minha insônia, que me mantém acordado em intermináveis noites de vigília solitária e obscura, nem tampouco a origem desta dúvida que cravou-se em minha mente como a garra de uma besta selvagem. Nada disso. O que me perturba - e creio que perturbará ainda por muito tempo, senão até o fim de meus dias -, o que me faz, por vezes, descrer de minha própria razão, é algo evidentemente mais sombrio: de todos os absurdos deste mundo, como, em nome de Deus, eu poderia saber o NOME daquela mulher?