segunda-feira, 5 de agosto de 2013

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Sobre o túmulo de M. L.

Não dormes sob os ciprestes,
Pois não há sono no mundo.
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O corpo é a sombra das vestes
Que encobrem teu ser profundo.
Vem a noite, que é a morte,
E a sombra acabou sem ser.
Vais na noite só recorte,
Igual a ti sem querer.

Mas na Estalagem do Assombro
Tiran-te os Anjos a capa :
Segues sem capa no ombro,
Com o pouco que te tapa.

Então Arcanjos da Estrada
Despem-te e deixam-te nua.
Não tens vestes, não tens nada :
Tens só teu corpo, sem que sequer o possua.

Por fim, na funda caverna,
Os Deuses despem-te mais.
Teu corpo cessa, alma externa,
Mas vês que são teus iguais.
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A sombra das tuas vestes
Ficou entre nós na Sorte.
Não 'stás morta, entre ciprestes.
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Neófita, não há morte.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Sobre Verônica e as correias

Como na paisagem de um crepúsculo primaveril, sim, precisamente, com as unhas dos pés pintadas de roxo, sentada no sofá, no velho sofá, como se meditasse, aqueles olhos nocivos apontados para ele, na penumbra acinzentada da sala, fora do tempo.
- Parece que a única coisa que há no mundo é chuva...
Pela primeira vez, ele levantou os olhos. Yo era um deusa, uma musa, uma náidade, ou o que? O que seria? Cinco dias de sol alto, e não parecia o bastante. A recepcionista do hotel havia lhe sorrido um sorriso tão largo, que nitidamente parecia estar acima de qualquer obrigação profissional. Na hora de entregar as chaves, as mãos se tocaram, ela enrubesceu, baixou os olhos. Que essência era essa, que lhe invadia as narinas? Era do corpo dela?
- O que você acha?
Sim, definitivamente, era o cheiro do corpo dela.
- Perdão?
- A chuva! É tão desagradável...
Pare de pôr reticências.
- Não há chuva, Verônica. Nem nublado está.
- É claro que está chovendo, seu bobo. Acontece que você não vê.
Não era justo que sempre tivessem que se encontrar em lugares como aquele. Impessoal, febril, sempre e cada vez a mesma treva.
- Sabe porque eu fumo, Daniel? Sabe, Daniel que fala inglês? Aposto que não.
Não, ele não sabia. Tampouco gostaria de descobrir. Não fora para isso que viera.
- Fumo porque é uma maneira de morrer aos poucos. Assim, quando for morrer de verdade, não vai doer tanto. Você não fuma, Daniel?
- Não.
- Então porque tinha um maço de cigarros na sua jaqueta, um dia desses?
- Não eram meus.
- E de quem eram? De outra mulher? Quer me deixar com ciúmes, Daniel? É o que quer?
- Não, Verônica, aqueles cigarros pertenciam à Divina Providência.
Arqueou os ombros, a cabeça caiu para trás, rápido movimento dos cabelos dourados. Gargalhou, estrídula.
- Então ela deve estar furiosa comigo!
- Por que?
- Eu os roubei.
Seminua. A inocência dos perversos. As mãos alisavam as pernas. Os tornozelos ainda vermelhos, marcados pelas cordas. Parecia mais magra. Ou talvez não, a luz era fraca. Já havia bebido metade da garrafa, era o bastante.
- Sabe que tenho seguido teu conselho?
- Que conselho?
- Livros. Agora, leio regularmente.
- Bom pra você. Já podemos começar?
- Por que a pressa? E quanto ao resto do vinho? Credo, Daniel, você está tão rude hoje... Nem parece que gosta de mim!
E quem foi que disse que ele gostava? Ele não gostava de ninguém.
- É claro que gosto.Mas tenho que voltar cedo.
Aquilo a feriu, ele pôde perceber. Na ilusão mãe de todas as ilusões, ela reinava absoluta. Levantou-se muda, soltou a taça a um canto, dirigiu-se religiosamente para o quarto. "O rose, thou art sick!" Temperança, a mãe de todas as virtudes. Quando perguntaram a Aquiles porque ele levava tão poucos soldados para enfrentar os troianos, ele respondeu: "Mais valem os meus cinqüenta leões que as vossas cinco mil ovlehas". Ele estava tentando, por Deus que estava! Foi para o quarto. Ela, deitada.
- Por que faz isso comigo, Daniel?
- Porque você permite.
Afundou a cabeça nos travesseiros. Inquieta.
- O que você quer de mim?
- Amor e submissão.
- E se eu não estiver a fim?
- Vou embora.
- E quanto a mim? Os meus sentimentos não importam pra você, Daniel?
- Não. Onde estão as correias?
- Na mala, ali no chão.
Amarrou-a, de bruços, cada membro numa ponta da cama, aberta e cintilante como uma estrela. Adorava vê-la desse jeito, impotente, o sol tatuado nas costas reluzindo, todo o corpo dela reluzindo no lusco-fusco daquele quarto decadente, como uma imagem santa. Aos pés couberam os nós mais apertados, ela tendia a espernear e coicear, além disso, tinha muita força nas pernas. Da última vez que a deixara com as pernas livres, Daniel levara um chute tão forte que deixou um enorme hematoma em seu abdômen, e a dor arrastara-se por diversos pares de dias. Na boca, a mordaça de látex. Perfeita, a bela Verônica muda. Protestou um pouco, logo acalmou-se. O chicote acariciando a pele branca, os pêlos eriçados. Bateu com força, várias vezes. O vermelho resplandeceu nas costas brancas. O sol amarelo tornou-se rubro. Logo surgiram as primeiras lágrimas. Era possível sentir a raiva, a improfícua raiva de animal enjaulado. Hora de chicotear-lhe as pernas. Excitante.
- Pode até ser que não pareça, mas isso dói em mim também.
- Hu... mmm... Nhã... nn...
- Quieta!
- Ahn... nnn...
Mais. Mais forte. Daniel apertou ainda mais as amarras. Ela tinha fechado os olhos, as lágrimas inundavam-lhe as faces. Há tanta beleza na miséria... Remexeu na mala. Verônica tentava debater-se, cadela acuada. Por isso ele havia apertado as correias, previra o irreparável. Agitou a garrafa.
- Nhn... nn... ãã!
A cabeça dela agitando-se, frenética. A negativa impossível. Mais lágrimas. Eu bato nela porque busco uma literatura minimalista. Derramou o líquido devagar. Tão bonito. O odor acre do álcool infestou o quarto. Verônica ardia, Azrael, espírito do fogo. Seus membros retorcidos, espasmodicamente, os dedos das mãos buscando agarrar-se em alguma coisa. O choro já não saía, transformara-se num soluço irracional. Meia garrafa era o bastante, pensou Daniel.
- Agora devo soltá-la, Verônica.
Os membros desamarrados simplesmente se deixaram conduzir, ela encolheu-se como um feto. Os olhos úmidos, distantes, alguma saliva escorreu pela boca quando tirou-lhe a mordaça.
- Eu... não... posso...
- Agora já passou. Fique quieta, a dor não vai durar para sempre.
- Não... consigo...
- devemos nos apressar. Eu logo devo ir.
Virou-se, encarou-o, as palmas das mãos suando, tremores a agitar-lhe o corpo magro. Daniel foi até o banheiro, trouxe a toalha, limpou-a. Símbolo de força e fúria. Despiu-se.
- Você não deve se mexer, Verônica. Se o fizer, eu vou bater nas feridas.
- Está bem, ficarei quieta, prometo.
Penetrou-a. Com tanto carinho, que ela sorriu. Após algum tempo, permitiu que ela se movesse. Ao atingir o clímax, sussurrou-lhe aos ouvidos:
- "Memento mori", Verônica, "Memento mori".

domingo, 2 de maio de 2010

Sobre uma dissolução

Chovia, chovia muito. Eu não sabia porque, mas chovia. Através da vidraça embaçada, via as pessoas correndo, para qualquer lugar que fosse, a fim de escapar da tormenta. Dois ou três rostos vazios entraram no café, fazendo soar a sineta presa ao umbral da porta. Todos ensopados, estranhamente ensopados. Nos gestos ficcionais que executavam ao retirar seus casacos, havia algo de misterioso e fascinante. Entretanto, ninguém pareceu ocupar-se deles, além de mim. Eu mesmo não o fiz por muito tempo; logo, estava novamente absorto na contemplação das sombras que se moviam, ligeiras, lá fora. Deleitava-me o inconfundível sabor do café, bem quente, e a densa volúpia da nuvem de fumaça que me envolvia, progressivamente, a cada novo trago no cigarro. Sobre a mesa, espalhavam-se alguns livros que trouxera comigo, e que, no entanto, desconhecia. E foi assim, envolto por essa falsa aura de dandismo, que eu vi Nathalia.
Ela possuía uma beleza difícil, dessas que ordenam um pouco de tempo para serem prefeitamente admiradas. Sob a luz do poste, seus lânguidos olhos azuis cintilavam timidamente, inflamados por aquela expressão quase pueril que é característica de certos estados de entorpecimento. Ela estava muito molhada, por causa da chuva. Tão molhada que parecia transparente. Os cabelos ruivos, que outrora haveriam de ter sido lisos, escorriam-lhe agora pela testa e pelo pescoço, como uma cascata de fogo. O vestido roxo agarrava-se ao seu corpo esguio, realçando-lhe os quadris pontiagudos, os contornos dos seios e do ventre. A maquiagem em torno de seus olhos derretera, fazendo-se líquida, as manchas do lápis delineador rolando sobre suas faces como lágrimas negras. Sua postura, ereta, era de uma elegância quase vitoriana, não obstante a tempestade, que castigava a tudo e a todos. A cabeça e o ombro levemente encostados no poste, as mãos para trás, possivelmente à altura das nádegas, e possivelmente também entrelaçadas; e o ar sublime de bailarina com o qual dobrava a perna esquerda sobre a ponta da bota. Parecia indiferente a tudo, ao passo que tudo parecia convergir para ela, como se fosse um prisma, ou o ponto de fuga de um quadro.
E pensar que aquele corpo, que - principalmente - aquela alma haviam saído de casa inteiramente secos! Compadeci-me dela. Ao menos, foi compadecimento o que pensei ter sentido. Achei aquela situação completamente injusta. Eu, ali dentro, aquecido por essa atmosfera indolente que paira, qual um fantasma acéfalo, à sombra dos cafés, enquanto ela, lá fora, resignadamente aceitava o seu destino de chuva. Era preciso fazer alguma coisa. E, no entanto, o quê? Acenar, convidando que entrasse? Ir até ela, cobri-la com meu casaco e pedir-lhe que viesse se sentar comigo, a fim de que pudesse se secar e tomar uma bebida quente? Em minha mente, muitas outras possibilidades cogitei, além dessas duas. Todas, porém, colidiram contra uma barreira invisível, erigida por um simples fato: era evidente que, se ela desejasse entrar, tê-lo-ia feito já há muito tempo. Era, sem dúvida, uma motivação outra que fazia aquela mulher permanecer ali, inviolável, em meio à tempestade que a açoitava, uma motivação que, pareceu-me, estava acima de qualquer compreensão, de qualquer vão entendimento que não fosse o dela. Restou-me ignorá-la, e retornar ao meu ocioso prazer espectral. Então ocorreu um fato estranho, pois tão logo pus os olhos sobre a mesa e vi meus livros, a xícara - já quase vazia - e o maço de cigarros, tive a sombria certeza de que Nathalia havia desaparecido, que já não estava mais lá fora, junto ao poste.
Tal certeza fulminou-me como um soco ou um pontapé; todavia, não tornei a olhar a rua, pois tal atitude me pareceu um tanto incongrüente, imbecil até.
Assim, lá estava eu novamente, entregue à minha cega contemplação de coisa alguma. A garçonete, obsequiosa, aproximou-se, perguntando-me se desejava algo mais além do café; disse-lhe que me trouxesse outra xícara, visto que este que eu bebia já estava frio. Ela se foi, após sorrir aquele sorriso mecânico, tão característico em pessoas que desempenham este tipo de função. Leve como uma brisa, escorregou seu corpo magro habilmente por entre as mesas, indo colar-se ao balcão. Honestamente, eu sequer queria mais café. Pedi com o intuito único de agradar a garçonete, que tão prestimosa fora em vir até ali ocupar-se de mim, sem que eu nem ao menos a tivesse chamado. Acabei afeiçoando-me àquela moça, simplória como me parecia, com uma atitude mais servil do que talvez exigisse o seu dever profissional. Resolvi dar-lhe uma boa gorjeta.
Perdido em meu devaneio sobre a garçonete, súbito abateu-se sobre mim uma espécie de mal-estar, senti meu corpo pesado, sufocado, como se alguma força externa e invisível exercesse enorme pressão sobre mim, fazendo com que o simples ato de respirar me fosse extremamente penoso. Senti também uma certa tontura, e formigamento nos braços. Essas sensações não duraram muito; logo, eu já respirava normalmente, e o tal sufocamento dissipava-se. A garçonete retornara, trazendo o café. Agradeci, e ela sorriu, porém desta vez tive certeza de que seu sorriso era muito natural, o que deixou-me, confesso, um tanto contente. Minha mão logo buscou o maço de cigarros, mas decidi que o melhor seria tentar parar de fumar. A idéia de morrer jovem me era repugnante. Casualmente - ou nem tanto -, tornei a olhar para a rua: Nathalia ainda estava lá. Foi uma espécie de surpresa desagradável. Eu não esperava vê-la novamente, ao menos não ali; inerte ainda, como antes, sombra atemporal. Havia, porém, uma diferença: seu olhar agora já não estava vazio, como que a contemplar o nada. Ela agora olhava diretamente para mim.
Não gostei daquilo, senti-me muito desconfortável. Prontamente voltei-me para dentro. Aquela mulher, embora muito distinta, figurava-me agora como alguém que não se encontrava em seu melhor estado de consciência. Decidi não dar mais atenção a ela.
A sineta da porta soou, anunciando a entrada de uma bela moça, alva, de cabelos negros e longos, um nariz fino e os malares muito altos, lembrando, em seu sério semblante, aquelas mulheres escandinavas habituadas ao frio do Norte do mundo. Deixou na entrada o guarda-chuva molhado, e não pude deixar de segui-la, com o olhar, enquanto encaminhava-se até uma das mesas, na qual sentou-se delicadamente, cruzando as pernas e largando a bolsa no chão. Começou a olhar ao redor, coisa que comumente fazemos ao chegar a esse tipo de lugar. Então, como era de se esperar, nossos olhares se encontraram, e ela fixou-se em mim, ao perceber que era observada. Encaramo-nos por pouco tempo, pois a garçonete - que não era a mesma que me atendera - já se aproximava dela. Conversaram, e a atendente saiu. Fitei-a ainda por algum tempo, embora não mais fosse correspondido como antes. Foi aí que tudo ocorreu novamente.
A mesma sensação de apreensão e sufocamento dominou-me, desta vez com maior intensidade ainda. A cabeça rodava violentamente, e minha vista chegou inclusive a escurecer por um momento. Aquele mal-estar me esmagava, impiedosamente. Era como estar preso entre dois elefantes. Certo de que desmaiaria, apoiei-me sobre a mesa, a fim de não cair da cadeira e acabar atrapalhando o fluxo do café. Entretanto, nada se deu como eu esperava, e, tal qual o primeiro, este segundo "ataque (assim o classifico por falta de melhor termo)" também foi-se esvanecendo, e eu logo me recompunha, cogitando que o melhor seria mesmo ir embora.
Foi o que fiz. Aproveitando-me de uma trégua concedida pela tempestade, paguei a conta e saí. Imediatamente senti o gélido choque de uma lufada de vento em meu rosto, e esta veio acompanhada por minúsculas gotículas que anunciavam a eminência do retorno da chuva. Apressei-me, o ponto de ônibus ficava a mais ou menos uma quadra do café. Não obstante, ao dar o primeiro passo, como que atraído por uma espécie de magnetismo sobrenatural, meu olhar voltou-se na direção do poste fatídico. Não sei porque, mas estremeci. Lá estava ela, precisamente no mesmo lugar, agora sorrindo e acenando para mim. Lá estava Nathalia.
Fui tomado por um tipo de pavor ancestral, aquela ominosa sensação de medo de algo indefinido, semelhante a aquilo que as pessoas supersticiosas sentem ao ouvir certos barulhos ou ver certos sinais em determinado dia, local ou horário. Que fique bem claro que não sou uma dessas pessoas: não tenho medo de quaresma, dia das bruxas, ou coisa que o valha; não temo fantasmas, demônios e outras bobagens desse tipo; sequer sou religiosos. Simplesmente, como já disse, fui tomado de assalto por este pavor horrendo, ao ver aquela singular figura - que estivera naquele mesmo lugar durante as últimas duas ou três horas, pelo que me constava - acenando em minha direção.
Paradoxalmente, esta sensação de pavor, ao invés de me fazer sair dali de uma vez, parecia compelir-me fortemente para que fosse até ela. Dessa forma, minhas pernas, ainda que trêmulas e sem o meu consentimento, arrastaram-me agônicamente através da rua, vazia e escura, cada vez mais perto, mais perto dela... À medida que me aproximava, seus acenos se tornavam mais constantes, mais rápidos, mais arritmados, ao passo que sua boca abriu-se num largo sorriso, expondo duas fileiras de dentes surrealmente brancos, que resplandeceram como pérolas, à luz mortiça do poste. Todo o rosto dela se iluminava, numa sensual expressão de langor, e o corpo parecia feito inteiro de água, tanto ela havia estado sob a chuva. Se as circunstâncias fossem outras, eu a teria desejado imensamente. Agora, porém, tudo o que desejava era não ter de me aproximar daquela mulher, que até o momento me obrigava a adivinhar coisas indizíveis ao longo da noite. No entanto, não podia evitá-lo. Estava agora a menos de três metros dela, e me parecia já poder sentir o aroma de seu hálito fresco, invadindo-me como uma brisa quente. De repente, um som, semelhante ao de vidro quando se quebra, e que parecia surgir de alguma incomensurável distância, chegou-me aos ouvidos. Sentindo-me como um paciente de hipnose que houvesse sido desperto de seu transe, virei-me, rapidamente, na direção de onde, julgava, o som viera. A porta do café se abriu, e um casal de namorados saiu, de braços dados e sorrindo. Foi o suficiente. Assim que voltei-me novamente para o poste, como já se pode deduzir, Nathalia havia desaparecido.
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Tais eventos passaram-se comigo há cerca de um ano atrás. Desde então, como se pode imaginar, minhas certezas a respeito da vida diminuíram consideravelmente, e as dúvidas, conseqüentemente, aumentaram. Sou um homem comum, envolvido numa situação que está muito aquém de sua prosaica compreensão. Posso, entretanto, aceitar muitas das coisas que ocorreram naquela noite. Quer dizer, não me parece tão absurdo, de todo, que uma pessoa passe horas sob forte chuva; ela podia ter uma gama enorme de motivos para fazê-lo. Da mesma forma, não me é tão inexplicável o fato de ela ter acenado para mim, à saída do café; em última análise, é possível que fosse uma dessas mulheres que, como todos sabem, fazem da vida noturna sua profissão, e que, assim sendo, tivesse visto em mim algo como um cliente em potencial. E, quanto ao seu súbito desaparecimento, bem, eu poderia perfeitamente ter me demorado mais, observando o casal de namorados, do que no momento julguei, e dado a ela tempo mais que suficiente para que se fosse, engolida pelas trevas. Não, meus amigos; todos esses fatos, embora, certamente estranhos e incomuns, podem ser razoavelmente explicados. Não é isso o que me atormenta, a ponto de me ter posto doente. Não é essa a causa de minha insônia, que me mantém acordado em intermináveis noites de vigília solitária e obscura, nem tampouco a origem desta dúvida que cravou-se em minha mente como a garra de uma besta selvagem. Nada disso. O que me perturba - e creio que perturbará ainda por muito tempo, senão até o fim de meus dias -, o que me faz, por vezes, descrer de minha própria razão, é algo evidentemente mais sombrio: de todos os absurdos deste mundo, como, em nome de Deus, eu poderia saber o NOME daquela mulher?

quarta-feira, 14 de abril de 2010

SM.

Lá. Sentada agora. Magia desprovida de sentidos dos pés que quase se tocam. Ele. O outro. Cigarro velado, meio aceso, langorosa volúpia da meia fumaça que insiste em querer subir. Desmaterializando o hálito dela, nos intermináveis e escusos labirintos de suas palavras, eu digo que ele e ela não são nada. Digo que o corpo com que ora simulam suas incongrüentes sensações nada mais é que um véu puído e cinzento, desgastado já pela indecência da demora de todas as coisas, pela insustentável falibilidade que os localiza, a ambos, na angústia de seu sombrio momento. Lá. Eu agora. Há um abismo que vai de mim ao toque, ao afago, ao total desligamento no qual ambos ora mergulham, ora se afogam, ora submergem. Ao Diabo quererem que eu leve a frio e a limpo uma vida dessas!
Na cena, já não sou-me, tampouco estou-me. Estão eles, que são o alheio a mim, já que tudo é alheio a mim, salvo o não ser eles, o não ser ele, o não ser o momento dos pés e das mãos que quase se tocam, das bocas que sobressaltadamente respiram a antevéspera do beijo, dos rostos pálidos que aguardam na ante-sala do simbioticamente fundirem-se. O absurdo de tudo reside no termos de tomar medidas diante do absurdo de tudo, e, uma vez que o não podemos, não o fazemos, e deixando de fazê-lo ficamos entregues à indecência do não-gesto, do não-gosto, do não-árvore.
Labirinto agora. Quando as mãos dele vão se aproximando, neste cego momento toda a metafísica do mundo já não é senão as mãos dele se aproximando, e o meu coração cada vez mais distante, mais distante... Há no abismo aberto um quê de não mais fechar-se, na distância do impensado uma marca mais horrorosa que dez milhões de signos da Besta, mas agora, que as mãos se tocam, tudo quanto nunca teve sentido perde então o sentido, e eu sinto um como que frio atravessar-me secamente, desprovido de qualquer forma de consciência. Labirinto mais extenso, sensação cortada ao meio, ilusão da sensação, e o nada-faca invade-me de assalto no momento da libertação das línguas dentro das bocas estrangeiras.
Recordação da voz paterna gargalhando, na tarde de Domingo: "meu filho, tu estás mais atrasado que o coice de um porco!" Agora que me penso sobriamente, concluo que seria melhor não ser o porco, ser uma mula, ser um grandioso eu-mula, relinchando meus delírios pelos estábulos do mundo. Coitado. Ter pena de si é tão complacentemente belo! No estalo do beijo que não ouvi, tudo passou-me , sem que me tivesse passado. Não tento mais compreender, não almejo à compreensão, quando penso que compreendo, acontece o beijo, acontecem as lágrimas, as desculpas, a carona de carro após a aula, os vidros embaçados, e afinal isto há de ser a vida, embora eu já não saiba existir-me para a vida, nem durar-me para além da morte.
De boa-fé, juro que Calígula habitou-me na alma no momento do beijo alheio, da criatura-beijo, do beijo que supostamente haveria de não ser meu, pois se o fosse, eu o talvez já não quisesse... Juro que era Calígula, com cavalo e senado e tudo, a distorcer-me de dentro para fora, de alma para ser, e juro identicamente que tive um vislumbre de um oásis só em mim, de uma quase volta aos banhos públicos e aos lusco-fuscos dos ébrios aposentos dionisíacos e às tocadoras de cítara outrora deíticas, hoje inaudíveis como ruínas de templos qualquer-deus.
Lágrima do pós-beijo, do pós-beijo não em mim. "Não era minha intenção agir dessa maneira, acontece que..." É o bastante, não é? " E o que fazemos agora?" Isso pressupõe qualquer coisa. Não, a noite é tão linda para simplesmente chorá-la. Foi isso o que me deu pena nela, quando nos despedimos. Seria bom se tivesse chovido, eu quereria ter me molhado... Não sei... Do fundo do peito, era tudo indiferente. Tudo indiferença. Afinal, quem é que não esconde lá pelas quintas úmidas desta vida algum segredo inenarrável, alguma paixão onírica, alguma velha angústia amarrotada num guarda-roupa qualquer? E isto não é ter alma? Pois se não, não sei se há alma e se a temos... Lá eu querer que alguém me chore! Tudo acontece, de acordo com qualquer coisa que não um Destino, e nós, Sísifos modernos, gêmeos da beleza e da vaidade, nada podemos quando se trata do vazio e monótono salão de festas das nossas contrições, do fogo-fátuo da nossa penitência eterna, Prometeus que somos, o coração.
Estala e trinca, fosso negro! Lá vai ela, lá o meu resíduo de esperança, o meu todo-quadro de citações metafóricas, o meu pensar-me que tenho relevância alguma, lá. Em pé, agora. Sem mais palavras. Pior: sem mais (por Deus) gesto!

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Havia, no frio daquela tarde, algo de inumano, certo odor que subia da grama úmida, um odor como que de morte, mas que não chegava a ser de morte, era algo mais fúnebre, nebuloso. O céu era cinza, pálido, fechado. O vento eriçava os galhos das árvores, ainda que suavemente, mas era um vento frio, que batia no rosto e o fazia ressecar-se. Frio também era o coração de Heitor, sentado, cabisbaixo, ao lado daquela que tanto lhe ferira, a causa de todo o seu sofrimento incondicional. Ambos mudos, como se a decência do gesto não lhes fosse permitida, fumavam e sequer ousavam fitarem-se um ao outro. "Nada a fazer", disse ela. Ele, do fundo de sua agonia, esforçou-se em levantar a cabeça para poder encará-la nos olhos, de frente, mas, infelizmente, o vazio que o puxava para baixo era muito mais forte e intenso. Em sua mente, ele formulou milhares de frases que supostamente deveriam ser ditas, entretanto nenhum som saiu-lhe dos lábios. Na quase que infinitude daquele momento doloroso, o eco das palavras dela retumbava em sua cabeça, em sua alma, em cada palmo de seu ser. A circunstância da perda é algo tão irreparável quanto a própria perda. De fato, tudo aquilo que, se sua parte, poderia ser feito, havia sido feito, pensava ele; porém, do dito de certo escritor latino-americano vinha a sentença que agora ocupava todos os seus pensamentos: "Os homens e os deuses possuem o mesmo destino: nascem e morrem sobre o colo de uma mulher."

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Nu

A ilusão é um alimento doce, porém não saciante. Esta noite, ela me prendeu. Não sei qual a causa dessa repentina mudança de comportamento, afinal, nos últimos dias tudo parecia bem, mas agora ela se tornou novamente a déspota que eu tanto temi. As cordas envolviam todo meu corpo, lágrimas escorrendo, lentas e brilhantes, pelas arestas da face. E então ela foi até o armário. Essa era, definitivamente, a parte que eu mais temia...E quando ela voltou, com aquele diabólico sorriso estampado na face, desci até as mais ínfimas portas da dor e da agonia. Ouvi o som de minha desgraça...Era um tilintar seco e silvado, e logo um objeto preto e brilhante fez seu movimento de cima a baixo, e eu senti as costas queimarem...Gritei. Estava nu, no escuro...