quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Sobre Verônica e as correias

Como na paisagem de um crepúsculo primaveril, sim, precisamente, com as unhas dos pés pintadas de roxo, sentada no sofá, no velho sofá, como se meditasse, aqueles olhos nocivos apontados para ele, na penumbra acinzentada da sala, fora do tempo.
- Parece que a única coisa que há no mundo é chuva...
Pela primeira vez, ele levantou os olhos. Yo era um deusa, uma musa, uma náidade, ou o que? O que seria? Cinco dias de sol alto, e não parecia o bastante. A recepcionista do hotel havia lhe sorrido um sorriso tão largo, que nitidamente parecia estar acima de qualquer obrigação profissional. Na hora de entregar as chaves, as mãos se tocaram, ela enrubesceu, baixou os olhos. Que essência era essa, que lhe invadia as narinas? Era do corpo dela?
- O que você acha?
Sim, definitivamente, era o cheiro do corpo dela.
- Perdão?
- A chuva! É tão desagradável...
Pare de pôr reticências.
- Não há chuva, Verônica. Nem nublado está.
- É claro que está chovendo, seu bobo. Acontece que você não vê.
Não era justo que sempre tivessem que se encontrar em lugares como aquele. Impessoal, febril, sempre e cada vez a mesma treva.
- Sabe porque eu fumo, Daniel? Sabe, Daniel que fala inglês? Aposto que não.
Não, ele não sabia. Tampouco gostaria de descobrir. Não fora para isso que viera.
- Fumo porque é uma maneira de morrer aos poucos. Assim, quando for morrer de verdade, não vai doer tanto. Você não fuma, Daniel?
- Não.
- Então porque tinha um maço de cigarros na sua jaqueta, um dia desses?
- Não eram meus.
- E de quem eram? De outra mulher? Quer me deixar com ciúmes, Daniel? É o que quer?
- Não, Verônica, aqueles cigarros pertenciam à Divina Providência.
Arqueou os ombros, a cabeça caiu para trás, rápido movimento dos cabelos dourados. Gargalhou, estrídula.
- Então ela deve estar furiosa comigo!
- Por que?
- Eu os roubei.
Seminua. A inocência dos perversos. As mãos alisavam as pernas. Os tornozelos ainda vermelhos, marcados pelas cordas. Parecia mais magra. Ou talvez não, a luz era fraca. Já havia bebido metade da garrafa, era o bastante.
- Sabe que tenho seguido teu conselho?
- Que conselho?
- Livros. Agora, leio regularmente.
- Bom pra você. Já podemos começar?
- Por que a pressa? E quanto ao resto do vinho? Credo, Daniel, você está tão rude hoje... Nem parece que gosta de mim!
E quem foi que disse que ele gostava? Ele não gostava de ninguém.
- É claro que gosto.Mas tenho que voltar cedo.
Aquilo a feriu, ele pôde perceber. Na ilusão mãe de todas as ilusões, ela reinava absoluta. Levantou-se muda, soltou a taça a um canto, dirigiu-se religiosamente para o quarto. "O rose, thou art sick!" Temperança, a mãe de todas as virtudes. Quando perguntaram a Aquiles porque ele levava tão poucos soldados para enfrentar os troianos, ele respondeu: "Mais valem os meus cinqüenta leões que as vossas cinco mil ovlehas". Ele estava tentando, por Deus que estava! Foi para o quarto. Ela, deitada.
- Por que faz isso comigo, Daniel?
- Porque você permite.
Afundou a cabeça nos travesseiros. Inquieta.
- O que você quer de mim?
- Amor e submissão.
- E se eu não estiver a fim?
- Vou embora.
- E quanto a mim? Os meus sentimentos não importam pra você, Daniel?
- Não. Onde estão as correias?
- Na mala, ali no chão.
Amarrou-a, de bruços, cada membro numa ponta da cama, aberta e cintilante como uma estrela. Adorava vê-la desse jeito, impotente, o sol tatuado nas costas reluzindo, todo o corpo dela reluzindo no lusco-fusco daquele quarto decadente, como uma imagem santa. Aos pés couberam os nós mais apertados, ela tendia a espernear e coicear, além disso, tinha muita força nas pernas. Da última vez que a deixara com as pernas livres, Daniel levara um chute tão forte que deixou um enorme hematoma em seu abdômen, e a dor arrastara-se por diversos pares de dias. Na boca, a mordaça de látex. Perfeita, a bela Verônica muda. Protestou um pouco, logo acalmou-se. O chicote acariciando a pele branca, os pêlos eriçados. Bateu com força, várias vezes. O vermelho resplandeceu nas costas brancas. O sol amarelo tornou-se rubro. Logo surgiram as primeiras lágrimas. Era possível sentir a raiva, a improfícua raiva de animal enjaulado. Hora de chicotear-lhe as pernas. Excitante.
- Pode até ser que não pareça, mas isso dói em mim também.
- Hu... mmm... Nhã... nn...
- Quieta!
- Ahn... nnn...
Mais. Mais forte. Daniel apertou ainda mais as amarras. Ela tinha fechado os olhos, as lágrimas inundavam-lhe as faces. Há tanta beleza na miséria... Remexeu na mala. Verônica tentava debater-se, cadela acuada. Por isso ele havia apertado as correias, previra o irreparável. Agitou a garrafa.
- Nhn... nn... ãã!
A cabeça dela agitando-se, frenética. A negativa impossível. Mais lágrimas. Eu bato nela porque busco uma literatura minimalista. Derramou o líquido devagar. Tão bonito. O odor acre do álcool infestou o quarto. Verônica ardia, Azrael, espírito do fogo. Seus membros retorcidos, espasmodicamente, os dedos das mãos buscando agarrar-se em alguma coisa. O choro já não saía, transformara-se num soluço irracional. Meia garrafa era o bastante, pensou Daniel.
- Agora devo soltá-la, Verônica.
Os membros desamarrados simplesmente se deixaram conduzir, ela encolheu-se como um feto. Os olhos úmidos, distantes, alguma saliva escorreu pela boca quando tirou-lhe a mordaça.
- Eu... não... posso...
- Agora já passou. Fique quieta, a dor não vai durar para sempre.
- Não... consigo...
- devemos nos apressar. Eu logo devo ir.
Virou-se, encarou-o, as palmas das mãos suando, tremores a agitar-lhe o corpo magro. Daniel foi até o banheiro, trouxe a toalha, limpou-a. Símbolo de força e fúria. Despiu-se.
- Você não deve se mexer, Verônica. Se o fizer, eu vou bater nas feridas.
- Está bem, ficarei quieta, prometo.
Penetrou-a. Com tanto carinho, que ela sorriu. Após algum tempo, permitiu que ela se movesse. Ao atingir o clímax, sussurrou-lhe aos ouvidos:
- "Memento mori", Verônica, "Memento mori".