quarta-feira, 14 de abril de 2010

SM.

Lá. Sentada agora. Magia desprovida de sentidos dos pés que quase se tocam. Ele. O outro. Cigarro velado, meio aceso, langorosa volúpia da meia fumaça que insiste em querer subir. Desmaterializando o hálito dela, nos intermináveis e escusos labirintos de suas palavras, eu digo que ele e ela não são nada. Digo que o corpo com que ora simulam suas incongrüentes sensações nada mais é que um véu puído e cinzento, desgastado já pela indecência da demora de todas as coisas, pela insustentável falibilidade que os localiza, a ambos, na angústia de seu sombrio momento. Lá. Eu agora. Há um abismo que vai de mim ao toque, ao afago, ao total desligamento no qual ambos ora mergulham, ora se afogam, ora submergem. Ao Diabo quererem que eu leve a frio e a limpo uma vida dessas!
Na cena, já não sou-me, tampouco estou-me. Estão eles, que são o alheio a mim, já que tudo é alheio a mim, salvo o não ser eles, o não ser ele, o não ser o momento dos pés e das mãos que quase se tocam, das bocas que sobressaltadamente respiram a antevéspera do beijo, dos rostos pálidos que aguardam na ante-sala do simbioticamente fundirem-se. O absurdo de tudo reside no termos de tomar medidas diante do absurdo de tudo, e, uma vez que o não podemos, não o fazemos, e deixando de fazê-lo ficamos entregues à indecência do não-gesto, do não-gosto, do não-árvore.
Labirinto agora. Quando as mãos dele vão se aproximando, neste cego momento toda a metafísica do mundo já não é senão as mãos dele se aproximando, e o meu coração cada vez mais distante, mais distante... Há no abismo aberto um quê de não mais fechar-se, na distância do impensado uma marca mais horrorosa que dez milhões de signos da Besta, mas agora, que as mãos se tocam, tudo quanto nunca teve sentido perde então o sentido, e eu sinto um como que frio atravessar-me secamente, desprovido de qualquer forma de consciência. Labirinto mais extenso, sensação cortada ao meio, ilusão da sensação, e o nada-faca invade-me de assalto no momento da libertação das línguas dentro das bocas estrangeiras.
Recordação da voz paterna gargalhando, na tarde de Domingo: "meu filho, tu estás mais atrasado que o coice de um porco!" Agora que me penso sobriamente, concluo que seria melhor não ser o porco, ser uma mula, ser um grandioso eu-mula, relinchando meus delírios pelos estábulos do mundo. Coitado. Ter pena de si é tão complacentemente belo! No estalo do beijo que não ouvi, tudo passou-me , sem que me tivesse passado. Não tento mais compreender, não almejo à compreensão, quando penso que compreendo, acontece o beijo, acontecem as lágrimas, as desculpas, a carona de carro após a aula, os vidros embaçados, e afinal isto há de ser a vida, embora eu já não saiba existir-me para a vida, nem durar-me para além da morte.
De boa-fé, juro que Calígula habitou-me na alma no momento do beijo alheio, da criatura-beijo, do beijo que supostamente haveria de não ser meu, pois se o fosse, eu o talvez já não quisesse... Juro que era Calígula, com cavalo e senado e tudo, a distorcer-me de dentro para fora, de alma para ser, e juro identicamente que tive um vislumbre de um oásis só em mim, de uma quase volta aos banhos públicos e aos lusco-fuscos dos ébrios aposentos dionisíacos e às tocadoras de cítara outrora deíticas, hoje inaudíveis como ruínas de templos qualquer-deus.
Lágrima do pós-beijo, do pós-beijo não em mim. "Não era minha intenção agir dessa maneira, acontece que..." É o bastante, não é? " E o que fazemos agora?" Isso pressupõe qualquer coisa. Não, a noite é tão linda para simplesmente chorá-la. Foi isso o que me deu pena nela, quando nos despedimos. Seria bom se tivesse chovido, eu quereria ter me molhado... Não sei... Do fundo do peito, era tudo indiferente. Tudo indiferença. Afinal, quem é que não esconde lá pelas quintas úmidas desta vida algum segredo inenarrável, alguma paixão onírica, alguma velha angústia amarrotada num guarda-roupa qualquer? E isto não é ter alma? Pois se não, não sei se há alma e se a temos... Lá eu querer que alguém me chore! Tudo acontece, de acordo com qualquer coisa que não um Destino, e nós, Sísifos modernos, gêmeos da beleza e da vaidade, nada podemos quando se trata do vazio e monótono salão de festas das nossas contrições, do fogo-fátuo da nossa penitência eterna, Prometeus que somos, o coração.
Estala e trinca, fosso negro! Lá vai ela, lá o meu resíduo de esperança, o meu todo-quadro de citações metafóricas, o meu pensar-me que tenho relevância alguma, lá. Em pé, agora. Sem mais palavras. Pior: sem mais (por Deus) gesto!

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